Verônica canta sozinha e sem fiéis presentes na Sexta-Feira da Paixão em Alpinópolis

A Semana Santa está sendo diferente este ano em Alpinópolis, assim como no resto do mundo, em função das medidas sanitárias adotadas para o enfrentamento ao coronavírus. A Paróquia de São Sebastião não deixou de cumprir a programação característica dessa época, porém sem a presença física da comunidade católica nos templos. As cerimônias vêm sendo realizadas e transmitidas por meio das redes sociais e pela rádio comunitária local. Um detalhe interessante, e digno de nota, é que durante as celebrações os sacerdotes pregam para as câmeras e também para os bancos ocupados por peças de roupas enviadas pelos fiéis.

A Semana Santa sempre foi um período de grande apelo religioso e cultural em Alpinópolis, isso desde os tempos de São Sebastião da Ventania. No entanto, uma das mais antigas tradições da cidade, o Canto da Verônica, entoado no decorrer da procissão do Senhor Morto, não foi realizado na presença da multidão, como de costume. A tradição não deixou de ser cumprida, porém a Verônica, dessa vez, cantou sozinha e sem o acompanhamento das Beús, já que as participantes são, no geral, mulheres de mais idade e, portanto, pertencentes ao grupo de risco.

Na celebração desta sexta-feira (10), ocorrida na Igreja de São Vicente, a ritualística foi seguida como de costume, contudo sem fiéis presentes no templo. Após o rito do descendimento da cruz – quando a imagem de Jesus é retirada do madeiro, levada ao colo de Maria e, por fim, colocada no esquife – foi proferido o Sermão das Sete Palavras – reflexão sobre as últimas palavras ditas por Cristo antes da morte – e, em seguida, entoado o, dessa vez, solitário canto da Verônica. A consumação de toda essa liturgia foi transmitida, em tempo real, pelas redes sociais (YouTube e Facebook) e também pela Rádio FM Ventania.

Descendimento da Cruz

Já a procissão do Senhor Morto, segundo relatou o seminarista Gabriel Ribeiro de Oliveira, não foi realizada este ano devido às recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) para que sejam evitadas, em qualquer hipótese, aglomeração de pessoas. Como tal cortejo é um dos eventos que reúne o maior número de participantes em Alpinópolis – somente no ano passado foram 10 mil pessoas, de acordo com a Polícia Militar – a paróquia optou, obviamente, por não realiza-lo.

Mesmo diante das limitações impostas pelo novo coronavírus, é fato que a Sexta-Feira da Paixão não deixou de exercer profundo fascínio junto à população católica alpinopolense. A mística e o aspecto melancólico permaneceram incólumes no momento em que a Verônica desenrolou o sudário e cantou para as câmeras e microfones, em uma mistura de latim e português, a conhecida canção que é, na verdade, uma adaptação das Lamentações de Jeremias (Lm 1,12). Foi a primeira vez que essa tradição, cultivada na cidade desde 1885, aconteceu sem público presencial.

Em Alpinópolis, diferentemente de outros locais onde o canto é realizado, podem ser identificadas supressões na primeira estrofe da peça, que é baseada no texto do cântico da obra do italiano renascentista Carlo Gesualdo. Dessa forma, o vocábulo similis, do segundo verso e o inteiro teor do terceiro verso, desaparecem, para permitir a sonorização do lamentoso cântico, que assim fica entoado:

O vos omnes / O vos omnes / Qui transitis / Per viam / Attendite / Attendite / Et videte / Si est dolor / Si est dolor / Sicut dolor / Dolor meus / Heu! / Heu Domine / Salvator noster! / Salvator noster! / Stabat mater dolorosa / Juxta crucem, lacrimosa / Dum pendebat Filius / Virgem piedosa! / Virgem mãe de Deus! / Pelas vossas dores / Abre-nos os céus / Pelas vossas dores / Abre-nos os céus.

Na cidade, sem distinção entre falecidas e vivas, Verônicas e Beús, por ordem de estreia ou de permanência, atuaram e atuam devotamente: América Kraüss, Negrinha do João Barqueiro, Tonha do Zé Miguelinho, Maria do Tiãozinho Cardoso, Sulica do Zé Gabriel, Anita da Dona Basília, Maria José do Zé Barba, Aparecida Pereirinha, Dorvalina, Gasparina dos Reis, Dona Rola, Lucinha, Dona Luzia, Fia do Pedro Cândido, Luzia do Noé, Luzia do Antônio Custódio, Cida Ferreira, as irmãs Cida e Naninha, Cristina do Geraldo, Graça Kraüss, Márcia Kraüss, Mercedes Kraüss, Edília do Tião, Carminha Ribeiro, Selma Ribeiro, Edna Ribeiro, Vânia Ribeiro e Ângela Ribeiro.

Antes da mística cantoria, existe a ritualística retirada da imagem do Cristo. Essa cerimônia é realizada por quatro homens – representando Nicodemos e José de Arimatéia – que se apresentam vestidos de túnicas com gorrões (capuzes) brancos, tendo as cinturas cingidas por cordões brancos. Antes do traslado e colocação no esquife, a imagem é direcionada a uma jovem que representa Maria, mãe de Jesus.

Maria com o Senhor Morto nos braços

Este ano quem personificou a Verônica foi Ana Maria dos Reis (Naninha). O papel de Maria foi feito por Ana Paula Ferreira e, como ‘Josés de Arimatéia’, estiveram Noé Firmino, Nego Braga e José Borges.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: Lopes, Dimas Ferreira; Lima, Maria Conceição Alves de. Ventania (MG): tradição e devoção: um enfoque cultural / Dimas Lopes e Conceição Lima. Ribeirão Preto: Maria Conceição Alves de Lima, 2016. 212f. ISBN: 978-85-917511-2-9

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